(19) A Caixa de Pandora

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Foi na França, perto de Reims. Era um espião alemão durante a primeira Guerra Mundial. Dizem que foi capturado enquanto assinalava as posições do exército francês aos alemães com uma lanterna. Dizem que confessou receber cem francos franceses por cada informação que dava aos alemães. É estranho, é verídico e foi executado.

(17) Rapariga com máquina de escrever e sem brinco de pérola.

A solidão e a ascese são imagens bucólicas que não se compadecem com uma máquina de escrever. Por mais que a senhora olhe por cima do ombro nunca vai encontrar o mundo idílico.

Embrenhe-se no presente e dê umas caminhadas. Que estas sejam à chuva, para ser mais romântico, e, se possível, acompanhada por doses generosas de paracetamol, ácido ascórbico, hesperidina e maleato de clorfenamina. Ah! E não se esqueça do lenço. Constipações há muitas, mas cavalheiros não tanto.

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(15) Bilhete postal

Não adianta escrever mais do que o indispensável. A vida não foi o encantamento em que acreditei. A culpa foi minha, tu surgiste apenas como um desvio ao desamor. Dizem que há mágoas, mas também há quem diga que o céu é apenas uma espécie de cais para esperar eternamente. A minha vida tem sido uma eterna espera. Acabei por não te conhecer melhor do que conheceria qualquer estranho que me oferecesse desamor. Acabei por me atirar para um oceano diferente. Navego com a esperança de te reencontrar no dia em que as palavras não passem de acessórios. O postal é lamechas, eu sei-o, mas eu também o sou, tu sabe-lo. Não esperes por mim.

Com o amor possível,

Armanda do Nascimento de Jesus

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De tudo o que lera no tal livro que, alguém lhe dissera, valia uma literatura só se lembrava daquela frase parva e sem sentido:

«Para o largo, para o largo, meu anzol!»

(13) Bilhete postal

Não sabia como te dizer, pois há coisas que se não dizem. Basicamente, despeço-me assim, por postal, porque não tive coragem de te dizer mais cedo que te ia deixar para que pudéssemos ser sozinhos os dois. Enfim, escreverei aqui palavras de auto flagelação com o intuito de que me desculpes a minha cobardia. Caso o não faças, deves ter a noção de que guardarás para ti o rancor e o ódio, uma vez que não regressarei e não terás qualquer hipótese de me comunicar o perdão que espero da tua dignidade. Eu, na minha egoísta cobardia, fico com a dúvida que me poderá servir de consolo.

Daquele que não é teu,

Sílvio Benedito Hidiórgenes Pampolino

(12) Amém

Só encontrava vastidão no limitado ámen que se vai dizendo a tudo. Abre goela, fecha goela e toma lá uma generosa dose de bajulação, adulação servil e lisonja interesseira. Neste momento pergunta-se: fazemos negócio? Transaccionamos? Troco um minuto de paz pela posse da alma?

Que seja.

(11) Em torno do torno

Amadeu Trambolho vivia em torno do torno. Um dia partiu-se o torno e o caderno de encargos não contemplava tamanha desgraça. Não sei se foi maior o desconsolo se o consolo de poder amaldiçoar a vida. Deus vingou-se e não lhe permitiu o primeiro prémio nos jogos da Santa Casa.

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Ele lá ia dizendo o credo, lá ia desfiando mandamentos, lá ia fintando pensamentos, lá ia sem ir. À noite estudaria o seu latim. rosa, rosae… rex, regis. Entupia-se em magnificências imaginadas e nunca digeridas. As horas de deserto são propícias à reflexão.

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Já dizia o Nuno Rapazote, filho de um galego cego que um dia – ninguém sabe porquê – estabeleceu comércio de aves em Santa Comba, que um cavalheiro que se dê ao respeito só pode surgir nos jornais por três vezes, e que a do necrotério não conta para a contagem. Uma quando conseguir, na feira de Febres, imitar o sorriso de Gioconda, outra quando conseguir pesar a própria vida em arrobas, e a terceira quando lhe chamarem sete vezes maldito. Também tinha fantasias, imaginava-se um georgiano de má índole e olhar coalhado.

 

(8) Educação

Dois deram em bebedores de bagaço. Quatro foram agricultores. Um foi cornudo, mas um dia deixou-se disso. Um foi pederasta e nunca abandonou o hábito. Um teve o hábito vestido durante quarenta e três anos e despiu-o quando entrou num prostíbulo com a sã intenção de purificar as pobres almas. Outro perdeu o tino na guerra, ainda que alguns digam que já se perdera antes. Aquele lá de cima, matou-se a trabalhar. Dois foram felizes e um terceiro nunca pensou nisso. Houve quatro que partiram os cornos em garraiadas e touradas afins. Um defendia a pena de morte até que lhe nasceu um filho. Dois nunca casaram com mulheres. Aquele nunca se livrou do cheiro a açafrão. Um perdeu a alma no colégio e chegou a adulto já vazio. Um morreu a sonhar que era um pastor na estrada de Damasco. Dois rezavam ao anjo da guarda. Dois tiveram instintos suicidas. Outro, aquele ali à frente, nunca soube conciliar a castidade com a liberdade. Outro viveu sempre com o olhar fixo. E mais não sei.

(7) Qual é a forma da alma dos lacraus?

O pai de Matilde não conseguia deixar de pensar na estranha dúvida que se lhe afigurara, na véspera, na casa de putas “O Jockey”.

Enquanto isso, lançava mansos insultos à filha.

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Enquanto lutava contra o desamor e o esquecimento, percorria o caminho que a levaria até ao cemitério. Caiu novo, o noivo, foi breve como a cigarreira do outro. Amaldiçoa, ela, o momento em que não se soube resguardar. Agora erguem-se orfanatos, asilos, hospitais e hospícios. Quem é que a mandou vestir-se de columbina? Quem? Agora, é isto, está reduzida a isto: habitante de asilo em luta contra o desamor e o esquecimento. Se a vida lhe der outra oportunidade, vestir-se-á de alcoólica incestuosa e apaixonada por um trompetista preto. Preto como o da gravura que um dia viu.

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Feche as pernas, diz o Jaquim Bonito, fotógrafo profissional e encartado por milhares de casamentos baptizados e outras entregas ao domicílio. Feche as pernas, insiste, que nas fotografias os homens, os noivos, os padrinhos, os putos de calções, o cura e afins não podem ficar de pernas abertas. Abre-se uma excepção para o cura quando de sotaina. Feche as pernas, vai dizendo o Jaquim Bonito, enquanto Jarculina, esposa devotada e assistente de fotógrafo, ajeita véus, grinaldas e, de quando em vez, o próprio Sol. Tal como nas telenovelas e nos livros do Lucky Luke.

(4) Magnificat em honra da Virgem

Dizia o panfleto que havia no lugar um lugar onde a diversidade de frutas frescas, secas e coloridas regalavam a vista. No penúltimo dia, diz o panfleto, havia liberdade e descobertas.

(3) nocturnos-1

2

Ecoponto amarelo: a lata que se transforma no para-lamas da bicicleta da minha tia.

A tia que se transforma na lata do para-lamas da bicicleta amarela.

A minha tia tem um ponto amarelo no para-lamas da bicicleta de lata.

A minha tia tem a lata de se transformar num eco-para-lamas com um ponto amarelo.

O eco da minha tia é um ponto amarelo na bicicleta de lata.

Jogos proibidos.1

Até agora o melhor papel de retrete para escrever posts ligeiramente jocosos, lúdicos, ofensivos e desinteressantes ainda é um blogue. Este é tão bom como qualquer outro. Quanto ao título, é o título de um  filme de René Clément. E basta.